A carta

Eu já sabia que ia ficar de mal com o mundo, antes mesmo de começar a ler a carta que Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, publicou de forma aberta, na última terça-feira (ontem. Você pode ler a carta AQUI). Eu já sabia que a pressão ia subir, só de ouvir que ele havia colocado uma carta emotiva e idealista. Mas, como eu me sinto cutucada cada vez que isso acontece, não resisti a ler.

É bem possível que a minha presente reação signifique um ponto final em uma carreira que, a falar francamente, não anda bem das pernas. Fazer comentários criticando um empresário do nível de Schwarcz, que obviamente sabe o que faz bem mais e melhor do que eu, soa, quando pouco, a despeito. Mas não é de hoje que eu comento as mesmas coisas (que não chegam a lugar algum, evidentemente, exceto os ouvidos dos meus amigos mais chegados, que me dão a hora de gastar seu tempo lendo o que escrevo), e aconteça o que acontecer, continuarei a comentar, até que alguém me prove que estou errada.

Não vou criticar o tom emotivo e idealista do documento. Eu mesma sou um bocado idealista e “livro” é algo que toca a corda mais emotiva do meu coração. Se assim não fosse, eu já teria desistido de tentar ganhar a vida escrevendo, e estaria servindo cafezinho em alguma repartição pública, garantindo, pelo menos, o salário do final do mês e uma aposentadoria mais adiante. Isso posto, devo dizer que, sim, a pressão subiu, e que “ficar de mal com o mundo” é uma forma muito suave de expressar que eu realmente senti. Cartas como essa, de editores, sobretudo os de sucesso, me fazem ter vontade de subir na torre da igreja e pular lá de cima. 

Vamos deixar uma coisa clara: sou escritora. ES-CRI-TO-RA. Portanto, artista. Se sou boa ou ruim, não vem ao caso. O que vem, sim, é isso: eu não sou empresária. Meu “negócio” não é produzir ou vender livros, embora o faça por desespero absoluto e falta de opção melhor. Minha praia é escrever, portanto criar. Não consigo aceitar um empresário tratando o seu negócio, que em última forma é o estágio final do meu negócio, desse jeito. Há anos que eu digo que “a indústria do livro no Brasil é lenta, atrasada e torpe”. Estou usando, de modo proposital, um vocabulário muito mais leve do que o que compõe, de fato, essa fala. Em todo o caso, quando eu digo “há anos”, coloque aí, no mínimo duas décadas. Isso nos leva aos anos 1990. De lá para cá a indústria do livro no Brasil nunca mudou o seu jeito lento, atrasado e torpe de ser.

Sendo escritora, tenho a honra de ser convidada a visitar Feiras de Livros do interior do estado do Rio Grande do Sul que, se endividado está, continua tentando remar contra a maré cultural que insiste em nos afogar. Daí que uma frase como “Muitas cidades brasileira ficarão sem livrarias” (grifo meu), me irrita profundamente. Muitas cidades brasileiras não têm livrarias há anos, a menos que se considere livrarias aquelas papelarias com uma estante de títulos de auto-ajuda e dois romances da safra passada. E só agora os empresários do setor do livro se deram conta disso? Só agora é que o público miúdo tem importância? Acho que os empresários do setor estão precisando viajar com urgência. Não de capital em capital, de Bienal em Bienal, mas ao Brasil profundo, aquele que está lá, consumindo novela e internet (quando há sinal de internet) por absoluta falta de opção. Aquele que ama ler, mas não lê porque o livro não chega, e não chega porque a distribuição é falha e cara, focanda principalmente nos grandes centros onde o dinheiro gira fácil. Levar literatura para o interior do Brasil, que se supõe ignorante e meio analfabeto, sem interesse pelo produto “livro”, é trabalho físico, trabalho duro, de suar camiseta e doer as costas. É trabalho braçal como o dos pedreiros que estão construindo o edifício aqui ao lado, igualmente sério e minucioso, igualmente capaz de mudar vidas. Livreiro pequeno, que faz feiras pelas pequenas cidades, que mantém furgões-biblioteca para facilitar o acesso do público à literatura, não dorme direito, não come direito, passa mais tempo na estrada do que em casa ou na loja. E há os que optam pela livraria “móvel”, porque ter uma loja física é caro demais. A voz destes comerciantes, tão próximos dos caixeiros viajantes de outrora, não se ouve. É como se eles simplesmente não existissem.

Mas, é claro, todos estamos preocupados com a recuperação judicial da Saraiva, e com as dívidas da Cultura…

Outra frase que me deixou de cabelo em pé foi “…senso de proteção para com nossos autores e leitores” (mais uma vez, o grifo é meu).

Como autora, esse tipo de coisa me deixa engasgada. Proteção? Qual proteção? Contra quem? Contra o quê? Algum interesse em levar nossos autores daqui para fora das fronteiras brasileiras? Alguma aposta para criar uma moda própria, nacional, nas letras? Alguma campanha publicitária, por menor que seja? As próprias grandes editoras brasileiras apostam despudoradamente na literatura estrangeira. Cadê o fomento à produção nacional? A aposta no autor novo? A aposta no autor de carreira? Não há, repito, não há real fomento à produção nacional. É muito mais fácil comprar os direitos de um título estrangeiro, cuja venda está semi garantida por seu sucesso fora das fronteiras brasileiras do que investir em um autor nacional. É muito mais barato colocar um selo de “três semanas na lista dos mais vendidos do New York Times” do que criar uma campanha publicitária para títulos nacionais. Que proteção a produção de literatura infanto-juvenil brasileira tem frente à lançamentos de infanto-juvenis vindo lá de fora? A de Fantasia? A de Ficção Científica? É que nós não escrevemos bem? E quem escreve? Você já viu a lista de agradecimentos de algum livro de algum escritor estrangeiro que você admira?  É uma quipe: agente literário, editor, preparador(es) de texto, revisoreS (com “s” maiúsculo, para que você perceba que não se trata de ter uma pessoa revisando as páginas que você lê, mas, no mínimo, duas), e mais, com muita frequência, uma lista de pessoas que leram o original e deram alguma contribuição. Um autor de sucesso hoje, não se faz sozinho – e não estou falando dos amigos do Facebook. Aliás, duvido, de fato, que algum dia, algum autor tenha tido uma venda expressiva sem ter um leitor beta, um vizinho de boa veia, um amigo cricri disposto a gastar seu tempo com um texto ainda por ser finalizado. O que eu quero dizer é que o autor brasileiro escreve bem: escreve MUITO bem. Autor brasileiro não tem toda essa equipe em torno dele. Frequentemente, o autor brasileiro é o componente único do time do “Eu Sozinho”.  E ainda assim, hoje em dia se pede que o seu texto, ao ser encaminhado para uma editora, já tenha passado por todos os estágios prévios, o(s) leitor(es) beta e no mínimo uma revisão ortográfica. O texto tem de estar pronto, finalizado. Se o autor acertar, ótimo. Se não acertar…

E por fim, que já perdi o fôlego, a última frase que destaco: “… para pedir que nós, editores, livreiros e autores, procuremos soluções criativa e idealistas neste momento.” (outro grifo meu). Pois bem, devo dizer que sim, os editores de pequenos negócios e os autores andam fazendo a lição de casa: os editores de pequenas editoras, ralando com publicações audaciosas em feiras de eventos que às vezes não são feiras de livros, mas que são feiras de entretenimento, essa coisa que tantos grandes editores olham como se fosse uma espécie de coisa menor, quando a Literatura, e a Arte como um todo, tem esse função tão básica de entreter.

E quanto aos autores, estamos publicando de maneira independente. Com a cara e a coragem. E muito, muito idealismo. Com a certeza de que, o que quer que tenhamos a dizer, merece ser escrito e merece ser lido. Coisa, aliás, que já acontece há muito tempo.

Mas a grande indústria editorial brasileira não parece saber disso. Porque como eu disse, ela é lenta, atrasada e torpe. Sempre correndo atrás da máquina. Neste caso, a “máquina” é o mercado que lhe fugiu por entre os dedos por uma única razão: a sua incapacidade de reagir em tempo, de anunciar seu produto como algo comercial interessante e não acreditar que a única coisa que salvará o mercado editorial brasileiro é o Brasil. Não as capitais. Não as grandes cadeias de livrarias. Não a internet.

Gente que lê, no território nacional. Apenas isso. 

E só para terminar, um pitaco a respeito de publicidade: você já viu a campanha para “Animais Fantásticos e Onde Habitam 2”, não é? Você já viu que a campanha publicitária para o próximo “Vingadores” já está rolando na rede. Você acompanhou a campanha publicitária para o lançamento da nova novela da Globo, para o próximo jogo de futebol, para o próximo Natal. Sério mesmo que esses produtos necessitam de campanha publicitária? Sério que blockbusters, que têm um público garantido, que novela, que tem um público cativo, que Natal, que é uma data inexorável no calendário, precisam de campanha publicitária?

Precisam, sim.

Agora, você já viu a campanha publicitária para o próximo romance da Cia. das Letras? Da Intrínseca? Da Darkside? A última campanha de vendas da Cultura, da Saraiva (fora as notícias negativas de recuperação judicial)?

Pois é. Depois não se entende porque a indústria literária brasileira vai tão mal…

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