Repuxo

É verdade que quase não mais escrevo. Me falta fôlego. O cotidiano brasileiro é como um dia de repuxo no mar de Tramandaí: você desavisadamente dá um passo adiante e entra em um buraco. A água que ia pela cintura chega no meio do peito de repente, se não no pescoço. Você luta para dar a volta, uma onda te cobre. Você quer voltar para o raso, o repuxo te suga. Você firma os pés para não ser levado, e a corrente de retorno – o nome oficial dessa força quase irresistível – vai devorando a areia onde você se firmou, expondo as solas dos pés e você cava mais fundo, arrastando os calcanhares de um lado para o outro, aumentando o buraco logo ali ao lado. De repente, o repuxo cessa. Você aproveita para avançar, depressa, depressa, mas, aí, outra onda vem e tudo começa de novo, até que você se safa, o coração acelerado – um sorriso, mas o coração acelerado, e não é exatamente de alegria, é de medo: você sabe que escapou de uma boa encrenca – ou não se safa e o mar te arrasta, e você se debate. Tomara que você saiba nadar. Tomara que não dê uma câimbra, tomara que o guarda-vidas venha te salvar.

É como me sinto. Não consigo escrever com as mãos ocupadas com as braçadas. Não que eu seja uma boa nadadora, nada disso. No momento, estou tentando me manter acima da água.

O último, até o momento, foi o famoso vídeo do ex-Secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim. Lembro que quando o vídeo entrou no Twitter, não o vi porque o frame que identificava o vídeo já avisava: lá vem outra treta do atual governo nacional. Meia hora depois, vi o vídeo por insistência da minha mãe. O que é isso?, ela perguntou, e eu respondi, outra do governo, e então coloquei o vídeo, e o achei feio, burro e contraditório. Como é que um sujeito que está anunciando um concurso cultural de nível nacional, o faz a partir de uma imagem tão cinzenta, tão feia, estática, sem apelo, sem graça, sem nada que se pareça minimamente com a Arte, com a Cultura, com a produção artística? E que história é essa de “quando a Cultura adoece, o povo adoece junto”? Que inversão é essa agora? Não será que homens doentes criam uma Arte ensandecida, ela que revela nossas mais profundas ansiedades? “Sagrado território das obras de Arte”? De que fala esse homem? A Arte não é sagrada. Nós é que dizemos que ela é sagrada, nós é que dizemos que ela é imortal, mas o que sabemos nós da imortalidade? Para nós o imortal é o que resiste à morte, é efetivamente eterno, porque resiste ao Tempo, mas o que sabemos nós do Tempo? Nós não sabemos nada. Nós mal sabemos das décadas que vivemos. Mal sabemos da História, porque alguém nos contou sobre ela. Cabral descobriu o Brasil, mas é mentira, porque o Brasil nem era Brasil ainda, o que hoje chamamos de “Brasil” era uma terra no horizonte a Oeste, e nessa terra firme, morava gente, gente que os cristãos vindos das terras do outro lado do Atlântico mataram, estupraram, escravizaram e dizimaram, e a ordem disso pouco importa, francamente. É desse “mito fundador” que esse homem está falando? Ou será dos que vieram com uma carta no bolso, um documento que lhes garantia terras, ferramentas e suprimentos, terras onde já viva gente, ferramentas que não fora entregues, suprimentos que não apareceram, a mentira e a corrupção sempre juntas, como uma erva daninha? A Arte é profana, precisa ser profana, porque se for sagrada estará morta, falará apenas com os deuses e não mais conosco, meros mortais. A Arte só é Arte se for plena de humanidade, de inquietude, de paixão, de tesão, de imperfeição. E, sobretudo, a Arte é, simplesmente. Não precisa de um prêmio que a reconheça como tal. Não é preciso que um grupo de doutos diga “isso é Arte” para que ela o seja. A Arte, para ser Arte, precisa tirar as pessoas do seu espaço de conforto. Romper a bolha em que nos refugiamos e nos colocar cara a cara com o que é mais humano de tudo: o Outro.

E aí, um tempo depois, a bomba, a identificação do texto nazista, e eu aqui, olhando boquiaberta, reconhecendo, finalmente, o que tinha visto, e me perguntando o tempo todo como é que isso aconteceu? Quem fez esse vídeo? Quem errou tanto? Foi, de fato, um erro? O que mais não estamos vendo nos outros anúncios, aqueles coloridos, animados, com a cara do Brasil dos anos 70?

O que mais não estamos vendo?

Agora, escândalo servido, águas divididas, começo a me perguntar se não foi de propósito. Se não era para tirar a temperatura das gentes. Será que o vídeo vai passar? Será que alguém vai reconhecer o discurso nazista? Ou será que não? Não será que vão engolir, que essa estética gris passará, finalmente, pela goela do povo? E se o povo engolir não poderemos seguir mais adiante, mais fundo e mais fundo, como o repuxo de Tramandaí?

Não sei você, mas eu, por dentro, choro.

Choro, porque vi amigos restando importância ao vídeo. Vi gente comparando assassinos e dizendo, sem dizer, que um erro justifica o outro. Choro pela perda irremissível da confiança em amigos queridos, que acham que não tem nada demais. Pessoas que eu admirava e a quem referenciava, quando era preciso. Mas o que digo? Somos todos humanos. Quem está ali ao lado, deve olhar para mim com a mesma cautela, com a mesma desconfiança: “lá vai alguém que eu admirava, a quem referenciava. Hoje, tenho ressalvas.” Triste Brasil, esse em que vivemos. O país do Futuro é uma grande decepção.

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